segunda-feira, 13 de abril de 2020

A praça vazia e o poeta


Uma estrela no céu da memória
brilha alta, verdadeira
O país chora sua triste sina inglória
Lá vem o cabisbaixo Brasil
descendo a ladeira.
O poeta passa pela praça vazia:
Sem gente, sem pombo, sem poesia...
Só uma solitária alma, vagando
pedinte, sem eira nem beira.
Será que a felicidade é uma quimera
nessa pátria sem bandeira?
Minha esperança também chora
diz que vai embora
sente a falta do Moraes Moreira.






Em 2020 (o ano que nunca existiu).

domingo, 22 de março de 2020

E finalmente choveu



No domingo, eu vi, da minha janela, a chuva caindo e levando tudo, rua abaixo.
As folhas, a terra, à noite... tudo sendo levado pela enxurrada.
Não fechei a janela.
Não pude, não quis...
A chuva molhou de som o silêncio seco que sufocava a rua.
Ninguém lá fora
Nada aqui dentro
A quarentena imposta nos faz, a todos, reféns do medo.
Nada nem ninguém... só um cachorro aleatório, uivando,
talvez por solidão, talvez por frio, talvez por tristeza...
Não sei por quê...
E a chuva, alheia a tudo, caindo copiosamente, diante dos meus olhos insones, 
molhados pelas horas que se iam furtivas...
Chuva fria como álcool gel
Gélida chuva
Insones olhos
Olhos insanos
Tremendo pela noite, 
Temendo pela morte,
Pela vida que se perdeu, em alguma esquina do meu quarto vazio de cor, de luz, de sentido.
Que doença é essa que me aprisiona?
Medo viral
Vira medo real e me contamina
Se a chuva pudesse me lavar dessa angustia!...
Ah, se a chuva me levasse!...
Lavar as minhas mãos
Levar meus pés, para onde?
Ir para longe?
Não há lugar para onde ir,
Nem o que fazer, 
além de ficar quieto, enquanto a chuva cai, indiferente
A mente tranquila
(Tranquila mente?!)
Eu me finjo 
E fujo, me isolando da vida lá fora
Permaneço aqui dentro,
Aqui, do 4º andar, vendo a chuva caindo e levando
meu sono, as horas, minhas certezas, minha paz....
E a vida que eu tinha?
Se foi, com a chuva, pra nunca mais.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Sobre quarentenas, ruas vazias e esperanças. (19.03.2020)



Acordei hoje, com uma brisa morna soprando o meu rosto. Um vento suave entrou pela janela de vidro do meu quarto: a claridade me acordou ou foi a voz distante de um apartamento vizinho?
12h, 13h30... Que horas são? Meu Deus, já está de tarde! Manhã já passou... É tarde.
Café de uma manhã que não existe ou um almoço da meia-tarde?
Não sei se vou comer... Não sei se quero... Não sei se posso...
O que tem pra comer?
Banana, pão, angústia, arroz, ovos, azeite, apreensão...
Minha geladeira tá no conserto, a TV deu um estouro dia desses, quebrou... Mercúrio retrógrado já passou, mas parece que deixou tudo retrógrado, andando para trás, retrocedendo... Tempo retrógrado... Pessoas retrógradas:
- Esse vírus aí é invenção da China, desses comunistas aí, para...
Pensamentos retrógrados, memórias retrógradas... 
As autoridades constituídas falam em quarentena em função da pandemia do coronavírus, o covid-19.
A população precisa ficar em casa!
Ninguém deve sair de casa. Não devem ir para a escola, para o trabalho... É quarentena!
Quarentena?! Para quem? Para quem pode pedir yakissoba pela internet?
Quem pode comprar álcool gel? Como é home office de pedreiro?
Quem trabalha por dia, pra sobreviver, pode entrar em quarentena?
Como? De que forma?
E a estudante universitária, nordestina, preta, cotista, que depende de Restaurante Universitário para ter as refeições diárias?
Si, quem pode ter o privilégio da quarentena?
Quarentena é para quem pode estocar comida na sua dispensa e se preparar para enfrentar uma era glacial, transformando uma das suas garagens num bunker, criminosamente contribuindo para a escassez de produtos nos supermercados e no aumento abusivo de preços?
Quem pode ficar de quarentena? O “branco generoso” merece a quarentena?
O branco “magnânimo” e “humanista” que talvez tenha a “generosidade” de dispensar a diarista que “mora longe”, num bairro periférico, com baixíssima infraestrutura e que, de manhã bem cedo, se expõe em transporte coletivo, aglomerado de desespero e sofrimento?
E essa diarista, “magnanimamente dispensada” do trabalho braçal, vai continuar recebendo o salário enquanto fica em casa, olhando para a geladeira vazia?
Como fica de quarentena quem trabalha para comer, pagar as contas (...), para sobreviver?
Estou aqui, agora, no lugar no qual todos e todas estamos sempre: na clausura do tempo capitalista. Presos e presas pelo pragmatismo das horas “produtivas”.
Já estamos, desde há muito,  aquarteladas e aquartelados da sistêmica e opressiva sucessão de compromissos e prazos pessoais, profissionais, que se enfileiram na dinâmica do cotidiano – que nem a pilha de processos do judiciário brasileiro. Enquanto isso, quando dá, a gente bebe uma sexta-feira aleatória, em uma mesa de bar, qualquer, ou sai vestido de noite para dançar em algum doce-lugar, só pra se convencer de que está existindo. Quer dizer, agora, nem isso.
Agora, só o determinismo das quatro paredes.
Isolamento social de 7 dias. Perambulando como zumbis, vagando nas solitárias esquinas do quarto que se torna menor e mais sufocante a cada dia.
Ou, simplesmente mergulhamos de meia, camiseta desbotada e solidão em alguma realidade paralela, talvez buscando, em alguma série, documentário ou filme, algo que nos ajude a ver sentido em alguma coisa.
Solidão instituída pelo poder público? Institucionalização do ensimesmamento?
Não sei. Eu sei que estava tossindo há dias.
- Será, meu Deus!...
Pensei.
Alguém me diz, em tom de preocupação:
- Vai ao clínico geral, logo! Vê isso, rapaz!
Outro alguém, aflitivamente me admoesta:
- Não! Não vai a lugar algum. Fica em casa! É perigoso ir ao hospital! Perigoso para você e para os outros!
Mas a tosse estranha seguia me incomodando muito e uma falta de ar, ao tossir
Como bom filho de hipoconcondríaca, decido: vou ao médico!
Consultório, máscaras, álcool gel, médica simpática - daquelas bem seguras da sua competência, do alto dos seus muitos anos de experiência. Diagnóstico: sinusite.
- Ufa! Não tô com o covid-19!
É “só” uma crise de sinusite que sabe-se lá de onde veio.
Compro os remédios sob prescrição médica: para sinusite, comprimido. Xarope, para curar a tosse. 7 comprimidos, 7 dias de xarope, mas, remédio para incertezas, cura para a alma está em falta, na farmácia.
Enquanto espero a minha vez de pagar, a atendente simpática do caixa, tentando interagir, acompanha o meu cantarolar sussurrante: soy loco por ti, América...
Do balcão, por detrás de uma fita de isolamento, diz a moça jovem, de cabelos curtinhos:
- Boa semana!
E me entrega os medicamentos. Retribuo o cumprimento e ela, num misto de constrangimento e gentileza, sorri e completa a despedida:
- apesar da situação, boa semana, não é?
Sorrio, mostrando concordância e saio pensando em muitas coisas, antes de chamar o motorista de aplicativo que me levaria de Barreiros para o Pantanal...
Sigo pensando no significado de isso tudo que tá acontecendo com a gente?
Pensando...
Penso agora: Como vim parar aqui, nessa quinta-feira, à tarde, enclausurado, em casa, ao lado de uma ora-pro-nóbis melancólica e uma caixa de remédio genérico a base de levofloxacino?
Que situação!
Não lembro bem quando isso tudo começou... Só sei que um dia desses estava na loja, num shopping, comprando uma camisa estampada com tucanos e flores e agora me vejo aqui, sentado, com o olhar perdido no movimento das cortinas da janela.
Uma pandemia atingiu Floripa! Uma pandemia na rua, ao alcance da minha porta, da palma da minha mão!
Que loucura, cara!
De repente, o medo do mundo me invade a alma. Estarei seguro aqui? Devo ir para Salvador? Mas, o Elevador Lacerda está fechado! O Mercado Modelo não tá funcionando!
Ou vou para Brasília? Fecharam o Teatro Nacional, que eu amo! O Pátio Brasil!
 - Não! Fica em casa!
As pessoas dizem.  
- Ninguém deve sair de casa!
E agora, José?...
E agora?... E agora meus amigos? Minhas amigas, para onde?
Minha gente! Para onde?
Agora só falamos por celular! Perigo para quem luta desesperadamente em não enviar os irritantes áudios de 2 minutos.
Sinto falta de conversar com muitas pessoas... Queria a presentificação do encontro, mas... whatsapp, instagram e messenger é o que temos para o jantar...
Queria que o meu pensamento me levasse lá para o horizonte distante, onde nasce o sol da esperança, de manhã cedinho. Mas, só consigo pensar em aumento do número de pessoas contaminadas..., pensar na pandemia, no covid-19 perambulando pelas ruas do medo, no mundo.
Se esse vírus terrível fosse solúvel em lágrimas como eu sou...
O covid-19 que se expandiu na China e espalha insegurança, pavor e morte pelo planeta é o mesmo que me faz escrever essas coisas, aqui, enquanto o tempo me mata, nessa casa vazia de tudo... Escrever enquanto penso muito em nossas mães, pais, nossos tios, tias, avós e tantos amigos e amigas fartos ou não de tempo e experiências, mas tão suscetíveis, nesse momento...
O covid-19 que nos enclausura a alguns e algumas e ameaça a integridade humana de outras e outros, é um mal, se não criado, potencializado pela perversa lógica do capitalismo.
Essa pandemia e todas as outras são culpabilidade do poder hegemônico, capitalista, que historicamente, transforma direitos humanos em privilégios; que restringe o acesso a educação, a saúde, a moradia e a alimentação de qualidade, a um pequeno grupo, enquanto os demais, às expensas da exploração da sua força de trabalho e dignidade humana, são relegados a sustentáculo desse e outros tantos privilégios
O pensamento capitalista que, historicamente, esvazia de humanidade e tenta submeter determinados grupos a subalternização é o mesmo que consubstancia o irresponsável, criminoso negacionismo de um presidente da república necrófilo, que nomeia de “fantasia” da mídia a mortandade que grassa mundialmente em números nada fantasiosos...
Ah! Espero que tudo isso passe logo!
Espero que o coronavírus pare de matar gente.
Espero que Cuba – Que país! Que gente! – tenha apoio internacional em seu firme propósito de salvar a humanidade do covid-19.
Espero que você e eu, diante desse mal imenso que nos aflige, sejamos capazes de pensar no coletivo – a despeito das nossas particularidades e idiossincrasias.
Espero que toda essa dor nos humanize e nos decolonize o olhar para que possamos reconhecer a humanidade da população negra desse país, da população lgbtqi+; a humanidade da população indígena e em todas e todos que querem o respeito ao direito de viver com dignidade em justiça, igualdade e equidade.
Da minha parte, sigo em casa, tentando não perder minha sanidade, em conexão com as pessoas e ajudando a quem alcanço, do jeito que posso, dentro das minhas limitações, cuidando para que o meu medo particular esteja num lugar que não prejudique as pessoas e a mim mesmo.
Espero. A esperança e o sonho são os elementos básicos da ciência e da poesia.
Sigo vivendo, espero.